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Jovem negro morre na porta de hospital: negligência inadmissível após mais de 4 horas de espera implorando por atendimento


Kevinn Belo Tomé da Silva, de 16 anos, morreu neste sábado (30) após uma parada cardíaca
e aguardar horas para dar entrada no Himaba. Crédito: Acervo da família

 

 

Em matéria especial para o Jornal A Gazeta, onde mantém uma coluna semanal, a presidenta da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Elda Bussinguer comenta a morte - por total descaso no acolhimento de saúde - do adolescente Kevinn Belo Tomé da Silva, de 16 anos, ocorrida na porta do Hospital Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves (HIMABA), em Vila Velha, na Grande Vitória (ES). O jovem esperou por mais de 4 horas em uma ambulância, na porta do HIMABA, implorando por atendimento.

 

 

"Negar o racismo, presente, institucionalizado, enraizado, cristalizado na cultura brasileira é mascarar a verdade de forma a perpetuar a desigualdade que interessa a tantos que se beneficiam da utilização desses corpos que ainda enxergam como escravos."

 

A seguir, o texto, na íntegra...


Sem atendimento no HIMABA

 

Morte na porta de hospital: o racismo no desprezo pela morte de negros

 

A morte do jovem Kevinn na porta de hospital em Vila Velha, após implorar
para que não o deixassem morrer, em breve será esquecida

 

Elda Bussinguer*

 

Kevinn é apenas mais um jovem negro que se vai em razão do desprezo que a sociedade nutre por todos aqueles que não se enquadram nos padrões normativos europeus dos colonizadores.

 

É fruto do racismo cristalizado em uma sociedade que, apesar de sua constituição majoritariamente negra, aceita a desigualdade e a pretensa supremacia branca com a naturalidade perversa daqueles que se sentem superiores e, por isso, não se importam com o destino cruel que está reservado a todos que descendem da imensidão de africanos escravizados para construir a nação brasileira.

 

Kevinn Belo Tomé da Silva, um adolescente de 16 anos, cheio de vida e de sonhos, amado por sua mãe, por sua família, um projeto de futuro a ser executado com respeito, pleno de dignidade, de potencialidades e de direitos, é deixado morrer na porta do hospital, porque vidas negras não importam e “não merecem viver”.

 

Negar o racismo, presente, institucionalizado, enraizado, cristalizado na cultura brasileira é mascarar a verdade de forma a perpetuar a desigualdade que interessa a tantos que se beneficiam da utilização desses corpos que ainda enxergam como escravos.

 

Nossa história está recheada de exemplos da utilização indevida, cruel, sádica, desumana, bárbara de corpos objetificados, prontos para proporcionar prazer aos senhores brancos, seja o prazer carnal dos corpos de mulheres que foram estupradas, violadas, seja o prazer dos açoites e das chibatadas, seja o fruto do trabalho e do esforço descomunal de energias humanas dedicadas à construção de prédios, dos engenhos e das lavouras que construíram a riqueza da nação.

 

O racismo está presente de forma vergonhosa, indigna, obscena, imoral, seja na nossa ação que deixa morrer tantos Silvas nas portas dos hospitais, seja na omissão que naturaliza e silencia diante das violações sucessivas que se reproduzem nas modernas formas de escravatura trabalhista, na fome que atinge mais negros do que brancos, na miséria extrema que está exposta pelas ruas das cidades, na falta de escolas e de políticas públicas de geração de renda, entre outras.

 

A morte do jovem Kevinn, na porta do hospital Estadual Infantil e Maternidade Alzir Bernadino Alves (HIMABA), que implorou para que não o deixassem morrer, em breve será esquecida. Novos Silvas virão, causando breves indignações e revolta, mas nada, ou quase nada, será feito para mudar essa realidade.

 

As médicas negligentes, insensíveis à dor e à vida e que eram responsáveis diretas pela alocação de Kevinn no leito que já lhe estava destinado, talvez, não sabemos, venham a responder por seus atos, mas nada que poderá amenizar a dor de uma mãe que viu seu filho morrer, injustamente, em razão, talvez, quem sabe, do fundamento de que corpos negros não importam para uma sociedade estruturalmente racista, que não se percebe assim.

 

4 horas e 30 minutos de espera dentro de uma ambulância, na porta do hospital, não podem ser naturalizadas.

 

É crime e assim deve ser considerado e tratado.

 

Vidas negras importam!

 

* Elda Bussinguer é presidenta da Sociedade Brasileira de Bioética, pós-doutora em Saúde Coletiva (UFRJ), doutora em Bioética (UnB), mestre em Direito (FDV) e coordenadora do doutorado em Direito da FDV.

 

Publicado pelo Jornal A Gazeta (ES), edição de 03/05/2022.

 

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