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Fome e frio: 33 milhões passam fome e 15,7 milhões de famílias em situação de pobreza extrema. País: Brasil


População de rua sofre com a fome e o frio.
Crédito: Freepik/@jcomp

 

Fome no Brasil

 

Neste inverno, cama e sopa quentinhas não podem ser privilégios de uma minoria

 

Enquanto curto uma noite fria com todos os apetrechos de aquecimento internos e externos,
33 milhões de brasileiros passam fome e 15,7 milhões de famílias
se encontram em situação de pobreza extrema


Elda Bussinguer*

 

O termômetro na cidade de São Paulo, onde estou hoje, marca 12 graus, com tendência de queda, devendo chegar a 8 graus durante a madrugada.

 

Acabo de tomar uma sopa quentinha que me aquece o corpo já aconchegado por capotes e meias grossas que aliviam a sensação de frio congelante que penetra por todos os poros, parecendo chegar aos ossos.

 

Enquanto curto uma noite fria com todos os apetrechos de aquecimento internos e externos, 33 milhões de brasileiros passam fome e 15,7 milhões de famílias se encontram em situação de pobreza extrema, não tendo com o que alimentar o corpo faminto, nem como aquecê-lo do frio que congela, para além do corpo, o espírito carente de solidariedade e de fé na humanidade.

 

No quarto ao lado, meus netos dormem em uma cama quentinha, sonhando com as brincadeiras gostosas e as fantasias das histórias de leões, lobos e tantas outras aventuras que se passam no mundo da imaginação infantil.

 

Para eles, e para mim, o inverno é uma estação charmosa, de aconchego familiar quando tomamos chocolate quente com bolinhos fritos ao redor da mesa. Alguns aproveitam para tomar seus vinhos preferidos acompanhados de queijos especiais.

 

Para parcela significativa da população brasileira, entretanto, o inverno é uma estação de dor, de sofrimento e de desespero. Milhares de adultos e crianças estão desamparados pelas ruas da cidade sofrendo os horrores da fome e do frio.

 

Vivem em um Estado que constitucionalizou o Direito à moradia e à alimentação adequada, mas que vem produzindo cada vez mais pessoas vivendo em residências precárias, em locais de risco iminente, ou desabrigadas, transformando os espaços públicos em moradia permanente.

 

Temos hoje 58,7% da população brasileira em situação de insegurança alimentar, considerando os que passam fome, ou se alimentam apenas uma vez ao dia. Quem passa fome também passa frio. Entre vestimenta e alimentação, prioriza-se, certamente, o alimento.

 

Essa condição, agravada pela pandemia, pelo desemprego crescente, e pelo desmonte das políticas sociais, não está mais concentrada nos bolsões de miséria do Nordeste brasileiro, sempre considerado o locus por excelência do infortúnio nacional. Ela se capilarizou, ramificando-se de norte a sul e de leste a oeste.

 

Por todo o país, inclusive no sul e sudeste, a fome se espalhou, e pelas ruas das cidades, inclusive as mais ricas, pessoas em situação de abandono convivem com os carros e transeuntes que as ignoram, insensíveis à sua miserável condição de existência, como se fossem a escória do mundo, indesejáveis, a lhes provocar incômodo.

 

Muitos pertencentes às classes média alta e alta cobram do poder público não o incremento de políticas sociais de redistribuição de renda e de respeito aos princípios constitucionais de solidariedade social e da redução das desigualdades, mas políticas higienistas que apartem para longe de suas vidas e de seus olhos o incômodo social provocado pelo medo de assaltos, violência e de terem que se encontrar pelas ruas das cidades com as sujeiras dos que consideram como excrementos humanos que ocupam praças, parques, calçadas e viadutos.

 

Quem se interessou em saber como as mais de 43 milhões de crianças que tinham como sua única refeição a merenda escolar iriam se alimentar no período de escolas fechadas pela pandemia? Poucos foram os Estados e municípios que de fato se organizaram para, prioritariamente, construírem políticas capazes de solucionar esse problema que era fundamentalmente de sobrevivência e de garantia de futuro para nossas crianças.

 

Enquanto milhões passavam e passam fome, o agronegócio e os supermercados viram seus lucros aumentarem às custas da vida e da saúde de tantos.

 

A democratização da moradia e da alimentação é a condição mais elementar de respeito à cidadania. Nossa grande extensão territorial, que daria para produzir alimentos em quantidade e qualidade suficientes para alimentar todas as pessoas que hoje passam fome, não pode servir, exclusivamente, para aqueles que foram priorizados nas políticas públicas de incentivo ao mercado produtor de alimentos em larga escala.

 

A desigualdade social, caracterizada pela radical concentração de riquezas, que produz miseráveis em série - seres humanos que, para sobreviverem, dependente minimamente de ter onde morar e o que comer -, é inaceitável.

 

O Brasil é um país de tradição judaico-cristã, onde católicos e evangélicos concentram o maior número de fiéis entre outras religiões. Deveriam, alguns entre os seguidores do Mestre, aprender com Jesus a olhar para os pobres e necessitados, abrindo as portas das igrejas para acolherem os que morrem de frio e fome, entendendo que deles também é o reino dos céus.

 

Muitos cristãos, que se afirmam comprometidos com a defesa da vida e da dignidade, mas que gastam suas energias, prioritariamente, na luta por pautas moralizantes e na defesa do “direito” de portarem armas, divulgarem fake news e propagarem a violência como modo de vida, deveriam ressignificar sua fé, olhando para o outro, seu semelhante, miserável e carente de tudo, como imagem e semelhança de Deus.

 

O frio e a fome matam o corpo. A falta de solidariedade mata a fé e a esperança no futuro, seja na terra, seja nos céus.

 

Uma cama e uma sopa quentinhas não podem ser privilégios de uma minoria que se percebe como sujeitos de Direitos. Elas são um direito de cidadania e dever do Estado.


* Elda Bussinguer é presidenta da Sociedade Brasileira de Bioética, pós-doutora em Saúde Coletiva (UFRJ), doutora em Bioética (UnB), mestre em Direito (FDV) e coordenadora do doutorado em Direito da FDV.

 

Publicado pelo Jornal A Gazeta (ES), edição de 14/06/2022.

 

 

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