notíciassbb


Dia Mundial do Refugiado. Temos motivos para comemorar? Texto de Elda Bussinguer e Fernando Poltronieri. Acesse...

Indígenas venezuelanos, da etnia Warao, acolhidos no abrigo Janokoida, em Pacaraima.
Crédito: Marcelo Camargo/Arquivo Agência Brasil

 

 

Direitos humanos

 

Temos motivos para comemorar o Dia Mundial do Refugiado?

 

Em maio de 2022, cerca de 100 milhões de pessoas estavam deslocadas forçosamente em todo mundo devido a perseguições, conflitos, violência, violações dos direitos humanos ou eventos que perturbaram a ordem pública

 

Elda Bussinguer*
Fernando Poltronieri**

 

Comemoramos no dia 20 de junho o Dia Mundial do Refugiado. Tal data foi selecionada pela Organização das Nações Unidas – ONU como uma tentativa de homenagear e trazer visibilidade à luta de refugiados ao redor de todo o globo. Mas, ao analisar a política brasileira voltada à situação dos refugiados, não nos parece haver motivo para celebração.

 

Em que pese o esforço da ONU, por meio de seu Alto-Comissariado para os Refugiados – ACNUR, bem como de diversas associações e organizações não governamentais, a temática dos refugiados encontra um grande empecilho nos países de economia capitalista selvagem, como é o caso do Brasil: o resgate de um nacionalismo opressor, discriminador, xenofóbico e violento.

 

A existência de refugiados não é novidade para nós. Durante anos vimos, nas manchetes dos jornais, desastres envolvendo naufrágios de embarcações nos estreitos que ligam o continente africano ao europeu. De igual forma, as guerras situadas no Oriente Médio - rotineiras e que possuem o dedo do capitalismo americano em seu agravamento – são, também, responsáveis por um grande êxodo de indivíduos.

 

Tais pessoas arriscam a própria vida em busca de condições minimamente dignas de sobrevivência. Isso porque a permanência nos países de origem se tornou impossibilitada por diversos motivos: crises ambientais, crises políticas, guerras, entre outros motivos que tornam inviável a vida de indivíduos detentores de direitos humanos.

 

Como não se lembrar da foto de Aylam al-Kuri, garoto de apenas três anos de idade, morto na areia da cidade costeira de Brodum, na Turquia, em setembro de 2015, usando uma camisa vermelha? Aylan e cerca de outros 11 refugiados sírios estavam a bordo de dois barcos que afundaram depois de deixar o sudoeste da Turquia a caminho da ilha grega Kos.

 

De acordo com o relatório Tendências Globais 2021 – do ACNUR/ONU, em maio de 2022, cerca de 100 milhões de pessoas estavam deslocadas forçosamente em todo mundo devido a perseguições, conflitos, violência, violações dos direitos humanos ou eventos que perturbaram a ordem pública.

 

Em se tratando de América do Sul, a partir do ano de 2017 vimos a intensificação do fluxo migratório oriundo da Venezuela para diversos países vizinhos, inclusive o Brasil. Não é necessário um grande esforço para se recordar dos discursos nacionalistas e segregacionistas desenvolvidos pela extrema direita brasileira, que tratava tais indivíduos como invasores e usurpadores do mercado trabalhista brasileiro. Tal argumento falacioso e discriminatório é o mesmo presente no discurso norte-americano de ódio aos latino-americanos (principalmente mexicanos).

 

O governo federal tardou a adotar medidas de acolhida e reconhecimento da condição de refugiado a tais pessoas – ressalta-se que o reconhecimento da condição de refugiado, além de regularizar a situação desses indivíduos, confere uma gama de direitos sociais, normalmente já fragilizados nos países de origem -, tendo restado a alguns municípios e Estados a iniciativa de recepcionarem tais indivíduos, evitando-se a permanência no Estado de Roraima, logisticamente impossibilitado de atender a demanda de todos os refugiados venezuelanos.

 

Só a título de exemplo, entre 2015 e maio de 2019, o Brasil registrou mais de 178 mil solicitações de refúgio e de residência temporária de pessoas oriundas da Venezuela. Um dado mais recente, também desprendido do relatório Tendências Globais 2021 – do ACNUR/ONU, demonstra que, até o final de 2021, 4,4 milhões de pessoas da Venezuela encontravam-se deslocadas fora do seu país.

 

Em que pese o Brasil ser um país composto, historicamente, por uma diversidade tremenda de povos e países, não configuramos na lista dos países que mais – e da melhor forma – recebem pessoas em situação de migração forçada.

 

Existe, no ordenamento jurídico brasileiro, definição jurídica do termo refugiado, bem como o estabelecimento de uma série de requisitos para sua concessão. A Lei Federal nº 9.474/97 tratou de incorporar à legislação brasileira matéria já regulamentada a nível internacional por meio da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, elaborada pela ONU em 1951.

 

Em terras brasileiras o que se verifica não é a ausência de previsão legal, há mecanismo normativo que viabiliza que o governo tenha uma ação humanitária frente às crises migratórias recentes, compreendendo o imigrante (em qual modalidade se situe) enquanto pessoa detentora de direitos humanos, acolhendo-o e minimizando os danos outrora verificados no país de origem.

 

Todavia, a narrativa nacionalista deturpada e incorporada de nossos vizinhos norte-americanos aqui gera um reforço do discurso de ódio em relação a todos aqueles que ocupem a posição do outro, neste caso, os imigrantes.

 

É inaceitável que, em nome da proteção de supostos princípios e valores do chamado povo brasileiro se opere uma prática xenofóbica e utilitarista de discriminação, repulsa e opressão de povos fragilizados pelas crises advindas do ultraneoliberalismo, que, por sua vez, foi a orientação econômico-política responsável pela criação de verdadeiras regiões de subdesenvolvimento e exploração, ocasionadoras de grandes crises humanitárias.

 

Só será possível celebrar o Dia Mundial do Refugiado quando entendermos que somos, todos nós, responsáveis uns pelos outros, numa prática solidária de efetivação de direitos humanos e acolhida de povos em situação de dignidade humana fragilizada, por meio da aplicação de um modelo humanitário frente a crises migratórias.



* Pós-Doutora em Saúde Coletiva (UFRJ), Doutora em Bioética (UnB), Mestre em Direito (FDV) e Coordenadora do Doutorado em Direito da FDV. Presidente a Sociedade Brasileira de Bioética.
** Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória – PPGD/FDV.


Publicado pelo Jornal A Gazeta (ES), edição de 21/06/2022.


As opiniões expressas em textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião deste veículo, e são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

 

Imagem da home: Google