Futuro do Brasil: é necessário pacificar, mas não anistiar
É hora de unir e reconstruir um Brasil de paz, esperança e justiça, mas um país onde
a verdade prevaleça sobre a mentira, o amor sobre o ódio
e a justiça sobre a injustiça
Elda Bussinguer*
O maior desafio de Lula é ser capaz de unificar o país ao mesmo tempo em que não negocia o inegociável. Anistiar aqueles que cometeram crimes da magnitude dos que foram cometidos pelo atual governo pode significar abrir mão da paz social que tanto desejamos e necessitamos. Nesse sentido, pacificar é necessário. Anistiar não é necessário, não é prudente e não é justo.
Unificar o país pressupõe não colocar na mesa de negociação, em hipótese alguma, tudo aquilo que fomentou e alimentou o ódio, dividindo a nação, dividindo as famílias, provocando fragilização, esvaziamento e descrença nas instituições e na ciência. Unificar o país pressupõe não negociar com aqueles que apoiaram ataques à democracia, que manipularam e continuam manipulando a fé, aqueles que incitaram a violência ao tempo em que a população era armada e incitada a fazer justiça com as próprias mãos.
Aqueles que implantaram uma política de morte, de dor e de sofrimento, em especial para os mais vulneráveis, cometendo incontáveis crimes e violações de direitos, não estão aptos a sentar, neste momento, na mesa de negociações. É preciso que primeiro sejam rigorosamente investigados e responsabilizados por seus ilícitos, redimindo-se diante da justiça que deve ser justa e equânime na aplicação das penas.
Em um governo ético e justo, os crimes devem ser investigados com lisura, independência, sem sigilo de qualquer natureza, de forma republicana, sem tratamentos especiais concedidos por aliados ou em razão de negociatas que não podem ser publicizadas.
Os que cometeram crimes devem ser declarados culpados pelas instâncias adequadas, na exata medida do que prescreve a lei, sem perseguições e sem revanche. Somente uma justiça justa, que garanta todas as prerrogativas de uma investigação séria, imparcial, de respeito ao devido processo legal e ao direito de defesa, poderá pacificar, de fato, a nação.
Perdão não é justiça. No Estado Democrático de Direito, perdão negociado sem investigação e responsabilização civil ou criminal, em nome da governabilidade, não tem o condão de produzir um sentimento de justiça capaz de gerar pacificação social.
Unificar o país pressupõe não negociar o inegociável – a justiça precisa ser aplicada. Unificar o país não contempla anistiar os crimes cometidos e jogá-los para debaixo do tapete.
A arte da política é, sem dúvida, a capacidade de negociar, pactuar, fazer acordos possíveis, éticos e republicanos. Lula é um especialista nesta arte. É um negociador exímio. É razoável imaginar que ele não conseguirá cumprir todas as promessas de campanha em razão da frente ampla que teve que fazer para alcançar a vitória no segundo turno. Isso é salutar e democrático. Mas há um limite ético que não poderá ser ultrapassado nessas negociações.
Anistiar Bolsonaro, seus filhos e todos os que em seu nome e em seu favor cometeram crimes, muitos deles crimes que produziram a morte de milhares de pessoas, não irá pacificar o país.
A pacificação exige que aqueles que ingenuamente acreditaram na boa fé do atual ocupante da Presidência da República ou que se viram enredados em uma teia de mentiras travestidas de verdade, que os levaram a colocar em risco sua sanidade mental, espiritual e moral, precisam conhecer, de fato, o ser ignóbil no qual depositaram suas esperanças, dando, à ele, o crédito e a devoção que suplantaram, muitas vezes, sua própria devoção e obediência ao Deus ao qual dizem adorar.
Pacificar o país é permitir que todos saibam, de fato, quem é Bolsonaro e quem são seus filhos sem a proteção de Augusto Aras e sem o sigilo de 100 anos. O passado precisa ser revisitado para que não cometamos os mesmos erros nos quais já incorremos em tempos pretéritos.
A anistia dos crimes cometidos na sangrenta e perversa ditadura militar brasileira, em nome de uma pretensa pacificação social, nos trouxe como legado os defensores “ingênuos” (ou não) da “Intervenção Militar”, da ditadura, da exaltação de General Brilhante Ustra, das ameaças ao STF, e de tantas atrocidades cometidas e toleradas em nosso país nos últimos tempos.
A recusa de Gleisi Hoffmann ao perdão pretensamente concedido a Lula por Edir Macedo, foi de uma sabedoria e coerência enormes. Lula e o Brasil não precisam ser perdoados, precisam de reparação.
A pacificação social não será alcançada com hipocrisias, com negociações políticas que se encaminhem para a negação, ocultação e anistia dos crimes cometidos por Bolsonaro, acobertado por alguns inescrupulosos donos do poder, que depois de enriquecerem às custas da vida e da dignidade dos brasileiros, agora vêm pedir pacificação sem investigação.
É hora, sim, de unir e reconstruir um Brasil de paz, esperança e justiça, mas um país onde a verdade prevaleça sobre a mentira, o amor sobre o ódio e a justiça sobre a injustiça.
Lula não possui, em nome da governabilidade e de uma pretensa pacificação social, carta branca para negociar a anistia dos crimes cometidos por Bolsonaro e por todos que se associaram à ele para rapinar o país, para matar de Covid e de fome nossos irmãos, para destruir nossas florestas, para promover divisões, para fomentar a violência e para comprometer o futuro da nação.
Pacificação sim. Anistia não.
* Elda Bussinguer é presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, pós-doutora em Saúde Coletiva (UFRJ), doutora em Bioética (UnB), mestre em Direito (FDV) e coordenadora do doutorado em Direito da FDV.
Publicado pelo Jornal A Gazeta (ES), edição de 08/11/2022.
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