"Jamais devem ser esquecidas a dor da ditadura e suas consequências traumáticas, a dor dos familiares pelos óbitos evitáveis
ocorridos durante a pandemia de Covid-19, a dor pelo horror e sofrimento que atualmente atinge os yanomamis."
A frase é de Elda Bussinguer, presidenta da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), convidada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Ágora/Abrasco) para participar, ao lado de Deisy Ventura (FSP/USP), Rômulo Paes (Abrasco e Fiocruz MG) e Pedro Uczai (Deputado Federal), de uma mesa sobre "Memória e Reparação: Anistia não!"
Rosana abriu o painel citando trechos do cientista e historiador judeu italiano Primo Levi (os 100 anos de uma testemunha do Holocausto) sobre “a destruição total da possibilidade de lembrar os mortos e a história dos campos de concentração de Auschwitz, nem tampouco de seus nomes ou famílias”. A citação lembra que, ao determinar a ausência da palavra, “torna o horror inenarrável, pois nada que pudesse lembrar esse pesadelo permaneceria, anulando a credibilidade dos sobrevivente." A presidenta da Abrasco quis demonstrar, com a citação, “que lutar contra o esquecimento e a indiferença pelos horrores que aconteceram no passado, é também lutar contra o horror que infelizmente continua a se repetir nos dias de hoje.”
A primeira palestrante da mesa, Deisy Ventura, lembrando a epidemia de Covid-19, fez menção a dois fatores importantes e marcantes. Um deles é o esquecimento: "Já está ficando para trás, de uma maneira muito rápida, tudo o que aconteceu durante estes dois anos. A resposta do Brasil foi traumática, com quase 700 mil mortos, grande parte delas evitáveis, com uma estratégia deliberada de propagação da doença desenvolvida pelo Governo Federal da época. É chocante que o esquecimento avance a passos tão largos." O segundo fenômeno, de acordo com a professora, está relacionado ao constrangimento das pessoas em lembrar o que aconteceu, “fundamental para responsabilizar todos aqueles que de maneira direta ou indireta contribuíram para essa catástrofe, que não foi natural e nem associada à inaptidão do sistema de saúde brasileiro", afirmou Deisy.
Para Elda Bussinguer, “é preciso superar as violações democráticas que vivemos em nosso país e é urgente discutir repetidamente sobre esse assunto. Não podemos, de fato, deixar que esse assunto seja esquecido. É preciso falar disso muitas vezes." A presidenta da SBB expressou sua radical discordância com o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, quando em sua decisão de 2010, votou contra a revisão da Lei da Anistia (na época, mais 6 ministros votaram contra a revisão), buscando a validade da aplicação da Lei da Anistia, de 1979. "É preciso formar juristas que compreendam muito além das normas. O homem 'aparentemente' cordial, parafraseando Sérgio Buarque, na realidade não existe: ele é domado em suas manifestações e nas manifestações de suas dores". Neste contexto, Elda completa: "O povo brasileiro não é um povo cordial, o povo brasileiro foi cordializado para que as violações dos direitos continuassem. É preciso que nos lembremos disso".
E a professora explica: “A ideia de Gilmar Mendes, deste pacto pacificador, teria nos permitido chegar a uma ordem constitucional capaz de aplacar os antagonismos, a revolta, o sentimento de injustiça e dor dos horrores cometidos pelos militares nos tempos da ditadura, que nos levou ao golpe contra Dilma Roussef. Essa ideia nos levou àquele momento, nos levou à eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Essa ideia nos levou às manifestações de louvor e exaltação da ditadura, dos ditadores e dos violadores naquele momento tão trágico onde vimos parlamentares, e o próprio presidente e seus filhos, defendendo figuras sombrias como de Ustra, como se fossem grandes homens da História do Brasil. Nos levou, também, aos atos golpistas de 8 de janeiro deste ano.” Para Elda, “Gilmar Mendes se esqueceu (ou ignorou por conveniência) alguns fatos, entre eles que eliminar a memória e a história de um povo tem consequências imprevisíveis e que o silêncio é confrade, cúmplice, coautor das perversidades e crueldades dos crimes cometidos. Ele se esqueceu que há um direito à história e à memória que não pode ser sonegado (em hipótese alguma) ao povo brasileiro.”
A presidenta da SBB finaliza: “A memória de nossa identidade e de nossa história nos leva a perguntar: O que pode acontecer ao homem que perde o fio de sua narrativa? O que somos e o que queremos, considerando todos os crimes e horrorres ocorridos durante a pandemia? Esquecer para que? Lembrar é necessário! Esquecer para aliviar a dor de quem? A dor dos violados ou a dos militares? A dor na tragédia dos mortos pela pandemia ou da tragédia provocada pela ditadura? Precisam vir à nossa memória os corpos esquálidos das crianças yanomamis! Mas precisamos lembrar, também, que não estamos livres das ameaças democráticas. Estamos reconstruindo uma frágil democracia. Mas estamos reconsquistando a nossa democracia.”
Na sequência, o palestrante Rômulo Paes lembrou que "no caso da saúde pública, a estratégia de contestação ou de negação das alternativas que a ciência apresentava em grandes consensos para o enfretamento da pandemia, mostrou uma característica interessante, porque o negacionismo se apresentou em todas as etapas e em todos os componentes fundamentais no enfrentamento da pandemia." Para ele, “O negacionismo é realizado a partir de narrativas exacerbadas e com estratégias de disseminação altamente sofisticadas, que inclusive estão presentes até hoje. Na época da pandemia, havia filmagens de alas hospitalares com ausência de pacientes, que aparentemente pareciam que realmente estes não existiam.” De acordo com o professor: “Havia ainda um negacionismo relacionado aos dados, questionando-os; em relação aos eventos mórbidos e às expectativas de óbitos que a doença poderia provocar, divulgando predições de óbitos em torno de 1.000 a 1.200 repetidos inclusive pelo presidente da República na época.”
O palestrante lembrou: “Ainda havia total desinformação sobre os meio de prevenção, tanto com relação aos fármacos quanto às vacinas; as narrativas alternativas muitas vezes buscavam uma pretensa autoridade, com artigos e estudos científicos de baixa qualidade ou até mesmo com a falsificação de artigos, de argumentos, na busca por pretensas autoridades que deveriam estar referendando essa argumentação.” Detalhe: para o palestrante tudo foi apresentado de forma organizada e sistemática, pautado por interesses de mercado e interesses políticos. De acordo com Rômulo: “Neste contexto, incluíram-se alternativas terapêuticas disponíveis que poderiam ser usadas no enfrentamento da pandemia, lembrando que essas alternativas, que envolviam as vacinas, demoraram a chegar.” E completou que é importante lembrar que "as alternativas farmacológicas continuam influenciando a precrição médica até hoje."
O deputado Pedro Uczai, último participante da mesa, elogiou a iniciativa da Abrasco e dos participantes do painel pela mobilização feita para enfatizar a importância de trazer à memória a história desses quase 700 mil brasileiras e brasileiros vítimas da Covid-19, “vítimas do negacionismo, vítimas de um governo que produziu essa tragédia humana em nosso país e que por uma questão ética, política, histórica, temos que reviver permanentemente.” Para o parlamentar, “A luta legislativa por políticas públicas deve ser permanente para efetivamente manter essa memória.” E garantiu: “Estamos trabalhando para instituir o dia 12 de março como o Dia Nacional em Memória das Vítimas da Covid. É preciso avançar em políticas públicas que possam atender essas milhares de famílias que convivem com sequelas, sequelas do luto pela perda de familiares e amigos, e sequelas de saúde pós-Covid. Todos devem ser olhados e percebidos como prioridade pública."
O encontro, coordenado por Rosana Onocko,
aconteceu em 1o de março, e pode ser revisto - na íntegra - AQUI