Enfermagem com 30 horas semanais de trabalho
é decisão para agora
Elda Bussinguer*
Um projeto de dignidade para essas profissionais não pode ser sazonal,
com valorização que surja apenas nos momentos de crise,
nos quais passam a ser chamadas de anjos e salvadoras da pátria
A pandemia nos trouxe variadas, incômodas e provocativas razões para reflexão. Ou nos debruçamos sobre cada uma delas e aceitamos a necessária condição de submissão a um processo de introspecção e de diálogo até então pouco valorizados ou teremos perdido uma das maiores oportunidades que nos foi oferecida para ressignificar e remodelar comportamentos.
O que antes era desvalorizado, ignorado, esquecido, deixado em segundo plano, precisou ser trazido a um lugar de relevância nunca antes imaginado. A Covid-19 nos colocou diante de uma imperiosa urgência de revisão de padrões de conduta e de valores.
Infelizmente, para muitos, os horrores vividos há tão pouco tempo parecem já terem sido esquecidos ou jogados em uma caixa de jumbo lacrada com ferrolhos e jogada no fundo do mar. Ingênua ilusão de normalidade. Na era do vírus, o que nos trará o futuro ainda é desconhecido, mas com alta carga de previsibilidade.
Passados mais de três anos da decretação da pandemia, assistimos com alívio, e alguns até mesmo com descaso, à declaração oficial do fim da pandemia, por parte da OMS.
A sensação para a maioria é de que o tempo de horror vivenciado nos últimos anos ficou literalmente para trás, o que, certamente, não corresponde à verdade dos fatos.
Ainda sofremos, e sofreremos por longo tempo, as consequências nefastas de uma pandemia global que atingiu a toda a humanidade e aos brasileiros de forma singular em razão da condução desprovida de respeito à ciência e à vida.
Nesse sentido, nossa coluna está se propondo, durante algumas semanas, a trazer ao debate algumas das lições necessárias que podemos e devemos tirar desse tempo histórico que ficará marcado de forma radical em nossas vidas pessoais e na história da humanidade.
Escolhi, como primeiro tema de reflexão, dentre os muitos que se nos apresentam, a lição relacionada à enfermagem, atividade milenar, tornada profissão científica a partir de Florence Nightingale, nascida em Florença na Itália, em 12 de maio de 1820, fundadora da enfermagem moderna que atuou na guerra da Crimeia, estabelecendo as bases de uma profissão comprometida com o cuidado humanizado e com a ciência.
A fantástica obra criativa de Florence, que conseguiu ressignificar o ato de cuidar com amor, até então conhecido, transformando-o em arte criadora de beleza e significados, sustentada em análises estatísticas e protocolos científicos, características da ciência, transformou o fazer da enfermagem em saber fazer, tirando-a da condição de mera ocupação para de profissão de base científica das mais relevantes socialmente.
A condição predominantemente feminina da profissão, ligada essencialmente ao cuidar, relacionado no mais das vezes à maternidade, dentre tantos outros fatores relevantes, contribuiu para que a enfermagem continuasse a ser relegada a um segundo plano no campo salarial e de valorização profissional.
Antes mesmo da decretação da pandemia da Covid-19 a Organização Mundial da Saúde, o Conselho Internacional de Enfermeiras e o movimento Nursing Now lançaram uma grande campanha internacional com vistas ao estabelecimento de estratégias de valorização dessas profissionais consideradas como essenciais para o alcance de padrões mínimos indispensáveis de assistência à saúde da população, considerando a urgência do alcance de cobertura universal de saúde.
A pandemia mostrou que essa estratégia era não apenas necessária como urgente e indispensável para a futuro da humanidade. Enfermeiras e enfermeiros foram os profissionais mais sacrificados em todo o mundo. Enfrentaram diretamente os riscos da contaminação quando ainda nem se sabia ao certo como ela se dava.
Colocaram suas vidas e de suas famílias em risco. Foram milhares de profissionais mortos no mundo em razão direta da contaminação pela Covid-19 e 65.023 contaminados e 872 mortos no Brasil. Tiveram sua saúde física e mental abalada e convivem com as doenças ocupacionais decorrentes desse momento caótico sem que recebam do poder público a necessária e justa retribuição.
O desânimo com a profissão tem levado muitos desses profissionais a abandonarem suas carreiras, sentindo-se decepcionados com o desrespeito e a desvalorização por parte dos patrões, do poder público e da Justiça.
Um número significativo sofre de ansiedade, depressão, síndrome do pânico, Burnout, das sequelas da Covid-19, entre outros. Os sonhos e as vocações perdem força diante da falta de reconhecimento, de apoio e dos baixos salários.
A escassez de mão de obra da enfermagem é uma realidade em todo o mundo. Estimativas do Conselho Internacional de Enfermeiras indicam que a falta desses profissionais pode chegar a 13 milhões nos próximos anos.
Sem a devida valorização da enfermagem o mundo não conseguirá manter seus serviços de saúde mais básicos colocando em risco o futuro da humanidade.
No Brasil, a tão sofrida aprovação da Piso Salarial da Enfermagem é demonstrativa da insensibilidade e falta de visão com relação a essencialidade desses profissionais. Festejado por muitos após décadas de lutas por sua aprovação, o piso é um mero paliativo que pouco modifica a condição das enfermeiras no país.
Proteger essas profissionais, valorizá-las, capacitá-las e respeitá-las, oferecendo condições de trabalho decente, é, no mínimo, demonstrativo de sensibilidade e capacidade de compreender o momento histórico o qual estamos vivendo.
Aprovar as 30 horas semanais para a enfermagem brasileira não pode ser um projeto para daqui a 5 ou 10 anos. É para agora.
Um projeto de dignidade para essas profissionais não pode ser sazonal, com valorização que surja apenas nos momentos de crise, nos quais passam a ser chamadas de anjos e salvadoras da pátria.
A dignidade profissional depende de condições de trabalho seguras, decentes e de valorização salarial. O futuro da humanidade depende fundamentalmente de profissionais do cuidado, com alta capacidade humana, técnica e científica. Perder profissionais da enfermagem agora pode colocar em risco nosso futuro.
A sobrevivência humana na Terra pode depender mais do que imaginamos hoje dos profissionais da enfermagem.
* Elda Bussinguer é presidenta da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), pós-doutora em Saúde Coletiva (UFRJ), doutora em Bioética (UnB), mestre em Direito (FDV) e coordenadora do doutorado em Direito da FDV.
Publicado pelo Jornal A Gazeta (ES), edição de 16/05/2023, veículo no qual a Profa. Dra. é colunista.
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Imagem da capa: Migalhas/Google