Expressa discordância às “Orientações do Ministério da Saúde para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da COVID-19”[1] (20 de maio de 2020), com proposta de revogação imediata.
A Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) tem participado intensamente de diversas ações relacionadas aos aspectos bioéticos, sociais e de saúde relacionados à pandemia da COVID-19. Essa entidade, com assento no Conselho Nacional de Saúde (CNS), tem se pautado cotidianamente na defesa dos direitos das pessoas em risco ou infectadas pelo SARS-CoV-2, em solidariedade àqueles e àquelas afetadas pela pandemia, a todos os profissionais que estão na linha de frente, no apoio incondicional ao Sistema Único de Saúde (SUS) e no papel crucial desse sistema no enfrentamento desta pandemia.
A SBB também está atenta aos dilemas éticos decorrentes de situações de insuficiência de recursos e tecnologias, e à discussão sobre avaliação dos tratamentos e medicamentos adequados à assistência à saúde dos pacientes, visando o respeito ao direito à saúde e à proteção de todos aqueles que deles necessitem. Para tanto, considera fundamental a reflexão ético-científica sobre a melhor assistência à saúde, bem como a necessária realização de pesquisas cientificamente reconhecidas para estabelecer, de modo adequado, o necessário tratamento.
Assim, em relação às possibilidades de tratamento farmacológico de pacientes infectados pelo SARS-CoV-2, assunto específico desta nota, a Sociedade Brasileira de Bioética ressalta:
Em referência específica ao documento do Ministério da Saúde (MS),apesar da divulgação da metanálise sobre a cloroquina em pacientes hospitalizados e da ausência de evidência científica para seu uso em pacientes com sintomas leves ou moderados, este divulgou “Orientações do Ministério da Saúde para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da COVID-19”, em que estabeleceu protocolo para o tratamento medicamentoso de pacientes diagnosticados com a COVID-19. Neste documento, o MS classifica os sintomas da infecção em três níveis: “LEVES, MODERADOS e GRAVIDADE” e recomenda para todos a administração da Cloroquina.
Vale destacar que a própria recomendação do MS reconhece a inexistência de ensaios clínicos que comprovem o benefício do tratamento. Ou seja, o Ministério da Saúde recomenda amplamente a utilização de tratamento potencialmente danoso pelos efeitos colaterais já verificados nos estudos publicados. Afora isso, mesmo com o reconhecimento da inexistência de estudo que comprove o benefício, exatamente num momento de dúvida sobre a possível evolução da sintomatologia, este documento transfere para o paciente, que está extremamente vulnerável e em relação completamente desigual com o médico, a responsabilidade pela decisão e, consequentemente, pelos eventuais efeitos adversos. Isto é científica e eticamente inaceitável.
Além disso, o MS, de maneira imprópria, equivocada e sofista, afirma estar seguindo os princípios bioéticos da autonomia, justiça, não maleficência e beneficência para esta liberação. Incorre em grave erro. Para compreensão da questão, a Sociedade Brasileira de Bioética esclarece:
Em conclusão, a SBB propõe que as “Orientações do Ministério da Saúde para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da COVID-19”, publicadas em 20 de maio de 2020 sejam, em seu inteiro documento, imediatamente revogadas, pela ausência de efeito terapêutico, pelo aumento dos efeitos colaterais já relatados, como maior risco para os cidadãos sem o adequado acompanhamento médico e pelas inquestionáveis desconformidades aos princípios bioéticos acima descritos, entre outros dispostos na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
Em sua avaliação, a Sociedade Brasileira de Bioética considera que o Ministério da Saúde deve, contudo, reforçar condutas já verificadas cientificamente como eficazes, estimulando o auto isolamento, associado aos cuidados preventivos de distanciamento social e higienização de mãos, expandindo o financiamento de pesquisas na área, bem como divulgar informação pública correta, tempestiva e exclusivamente aquela baseada em evidência científica e eticamente adequada. Finalmente, a SBB considera que o MS deve fornecer, aos hospitais públicos, os insumos e equipamentos necessários para o tratamento dos pacientes, e para a proteção individual dos profissionais de saúde.
Brasília, 30 de maio de 2020.
DIRCEU GRECO
Presidente
Sociedade Brasileira de Bioética
[1] Orientações do Ministério da Saúde para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da COVID-19 Disponível em https://saude.gov.br/images/pdf/2020/May/20/ORIENTA----ES-D-PARA-MANUSEIO-MEDICAMENTOSO-PRECOCE-DE-PACIENTES-COM-DIAGN--STICO-DA-COVID-19.pdf
[2] Mandeep R Mehra, Sapan S Desai, Frank Ruschitzka, Amit N Patel Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis. The Lancet May 22, 2020 Disponível em https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2820%2931180-6
[3] “Solidarity” clinical trial for COVID-19 treatments (27May2020) disponível em https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov/solidarity-clinical-trial-for-covid-19-treatments
[4] UNESCO. Declaração Universal sobre Bioética e Direito Humanos. Adotada por aclamação no dia 19 de outubro de 2005 pela 33ª sessão da Conferência Geral. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf Acesso em 30 maio 2010
[5] UNESCO. Declaração Universal sobre Bioética e Direito Humanos. Adotada por aclamação no dia 19 de outubro de 2005 pela 33ª sessão da Conferência Geral. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf Acesso em 30 maio 2010
[6] Idem